Tuesday 25 April 2017

"Brother", "Julie" e Essencialismos Estratégicos

Esse blog também vai ser usado para discutir assuntos tangentes às nossas discussões em sala de aula.

Na semana passada, discutimos o assim-chamado "essencialismo estratégico": a presunção temporária que raça, gênero e outras construções identárias socioculturais são, de fato, essenciais e imutáveis para fins políticos. Tanto Baum quanto o Paul Gilroy (em seu livro Entre Campos) presumem que tais essencialismos fictícios são as vezes necessárias para a manutenção da unidade política de grupos subalternos, frente a estruturas de dominação como racismo, sexismo e etc.

Mencionei que acho que o Baum fez uma má-leitura de Gilroy quando ele situa esse autor como alguém que nega a necessidade dos essencialismos estratégicos como estratégia de resistência. Gilroy aceita a necessidade disto, mas nós alerta à tendência desses essencialismos caírem em fascismos ou micro-fascismos, uma vez que sua lógica está profundamente enraizada na noção de diferença e subjetividade ocidental que estamos discutindo na sala de aula e que Denise Ferreira da Silva critica arduamente.

Garvey e Dubois

A discussão virou para a tendência, dentro de determinadas braços do(s) movimento(s) negro(s) contemporâneos de supervalorizar uma certa padronização da negritude e a noção de "negro de verdade". Mencionei que esse problema existe no movimento pelo menos desde os tempos das brigas entre as facções de Marcus Garvey e W.E.B. Dubois nos EUA nas primeiras décadas do século passado e que provavelmente atingiu uma certa ápice na "guerra" travada entre as Panteras Negras e a US Organization de Ron Karenga em Califórnia em 1969. É mister notar, neste contexto, que Karenga é o criador do assim chamado "Natal Negro", Kwanzaa, e que ele foi condenado a 1-10 anos de prisão por ter sequestrado e torturado duas mulheres, membros do USO. (Karenga nega que os ataques aconteceram e alega que tudo foi criação da FBI. Porém, sua ex-esposa  testemunho contra ele no tribunal. É mister admitir que não sou grande fã de Karenga e espero que vamos ter a presença, na sala de aula, de meu amigo Adrian Eric, que tem uma visão mais sutil do homem.)

De qualquer maneira, a padronização fascista de identidades foi o alvo da crítica de Gilroy e não o uso de essencialismos estratégicos, que ele considera meio que inevitável. Contra essa tendência, Gilroy salienta o conceito de "diáspora" versus o conceito de "raça".

Durante nossa discussão, lembrei das palavras do poeta Gil Scott-Heron, certamente uma das vozes negras mais poderosas dos EUA do século XX e seu poema "Irmão", escrito em 1970, no auge dessa debate nos movimentos negros nos EUA. Acho que merece ser reproduzido e traduzido aqui:




BROTHER
Gil Scott-Heron, 1970

Tratamos demais em externalismos, irmão.
Sempre com os cabelos naturais, batidas de mão e os dashikis.

Nunca pode um homem construir uma estrutura operante para o capitalismo negro.
Sempre é que o homem leia Mao ouF anon.

Acho que conheço bem demais vocês, revolucionários negros "sinceros".
Lá em cima duma caixa na esquina, falando em estourar os miolos dos rapazes brancos.
Mas não chegamos neste ponto ainda, neh, irmão.

Chamando esse homem de Pai Tomas,
E falando para aquela mulher que ela deve ter cabelos naturais,
Mas você não falaria com ela se ela fosse feia, neh, irmão?

Alguns de nós temos te observado bem de perto.
E agora, sua atitude parece p'ra lá de dúbia,
Seu jeito de atacar as pessoas com sua pose de híper-negão,
Pulando por cima de alguns homens negros pois eles querem conseguir seu B.A. [diploma de Bacharel de Artes]
Mas você nunca está por perto quando seu B.A. está em perigo.
Quero dizer seu rabo preto [your black ass]

Acho que foi fácil demais para você esquecer que você era um crioulinho antes de Malcolm.
Você dirigiu com sua moça branca pela Village [bairro boêmio de Nova Iorque] toda sexta a noite
Enquanto "os de raiz" ficaram por aí te fitando com inveja, bebendo vinho.
Lembre-se?
Você precisa organizar suas bancas de memória, irmão.
Mostra para aquele homem que você chama de Pai Tomas onde é que ele está errado.
Mostra para aquela mulher que você é um homem negro sincero

A única coisa que precisamos é ver você calar a boca e ser negro.
Ajude aquele homem.
Ajude aquela mulher.
É por isto que os irmão existem, irmão.


We deal in too many externals, brother.
Always afros, handshakes, and dashikis.

Never can a man build a working structure for black capitalism.
Always does the man read Mao or Fanon.

I think I know you would-be black revolutionaries too well.
Standing on a box on a corner, talking about blowing the white boy away.
That's not where it's at, yet, brother.

Calling this man an Uncle Tom,
And telling this woman to get an afro,
But you won't speak to her if she looks like hell, will you, brother?

Some of us been checking you act out kinda closely.
And by now it's looking kinda shaky, the way you been rushing people with your super-black bag.
Jumping down on some black men with both feet because they are after their B.A.
But you're never around when your B.A. is in danger.
I mean your black ASS.

I think it was a little too easy for you to forget that you were a negro before Malcolm.
You drove your white girl through the village every Friday night,
While the grass roots stared in envy and drank wine.
Do you remember?

You need get your memory banks organized, brother.
Show that man you call an Uncle Tom just where he is wrong.
Show that woman that you are a sincere black man.

All we need to do is see you SHUT UP AND BE BLACK.
Help that woman.
Help that man.
That's what brothers are for, brother.

E por falar em culturas "essenciais" e apropriações, falei na aula da grande mistura de estilos musicais que aconteceu na América do Norte no século XVII, antes do desenvolvimento da noção de raça e do exclusão racial, quando servos brancos e escravos negros dividiram os mesmos espaços de convivência e um status legal semelhante. Boa parte daquilo que é entendido como "música de raiz" ou "música folclórica" nos EUA foi estabelecida nessa época.

Mais tarde, porém, no século XIX, esse estilo de música foi transformado numa paródia da negritude nas produções do teatro de revista e, por essa razão, ele foi largamente rejeitado pelos vários movimentos negros como "inautêntico", "vendido", ou "não negro".

Os Carolina Chocolate Drops são uma banda negra que está tentando resgatar esse estilo de música, entendido como "branco" nos EUA, como componente vital da história negra. A cantora principal, Rhiannon Giddens, tem feito uma música no estilo tradicional que é de quebrar o coração e que fala de outro assunto que temos discutido na sala de aula: o fim do escravidão e as reações dos ex-escravos ao seus ex-mestres.

The Carolina Chocolate Drops


Nesta versão (chamado "Julie", embora sua estrutura musical vem de um arranjo tradicional), Giddens relata um diálogo entre uma escrava e sua sinhá na hora da chegada das tropas federais durante a Guerra Civil EUAmericana. Um pouco diferente do "grande mito" da lealdade promulgado por filmes como E o Vento Levou, neh? A música é extremamente poderosa porque representa, simultaneamente, ambiguidades e não ambiguidades. Tenho duas versões para compartilhar. A primeira é a mais bonita e a segunda contem um discurso de Giddens sobre como e porque ela escreveu a música. Notável aqui é o fato que Giddens era aluna de Peggy Seeger, irmã do famoso Pete Seeger, rei dos músicos folk norte-americanos, sobre qual escrevi um pequeno artigo na ocasião de sua morte, em 2014. Giddens afirma que Seeger teve uma influência enorme em sua formação musical.

Peggy e Pete Seeger

Enfim, na música, como em tudo que é cultural na interface entre "branco" e "negro", what goes around, comes around...

Rhiannon Giddens

JULIE (Tradicional)
Rhiannon Giddens (Tradicional), 2015 (18xxx)


Julie, oh Julie
Não correras?
Pois vejo que os soldados têm chegado
Julie, oh Julie
Não consegue ver?
Esses diabos vão te levar longe de mim.

Sinhá, oh Sinhá
Não correrei
Pois tenho visto que os soldados têm chegado
Sinhá, oh Sinhá
Eu vejo, sim
E ficarei aqui até eles vêm para mim.

Julie, oh Julie
Você não irá
Deixar essa casa e tudo que você conhece
Julie, oh Julie
Não vai embora daqui
Deixar nós que te amamos e deixar tudo que é caro p'ra você.

Sinhá, oh Sinhá
Irei
Deixarei essa casa e tudo que conheço
Sinhá, oh Sinha
Irei embora daqui
Com a família que me resta
É tudo que é caro p'ra mim.

Julie, oh Julie
Conta uma mentira para mim
Se eles encontram essa arca cheio de ouro ao meu lado
Julie, oh Julie
Fala para aqueles homens
Que essa arca cheio de ouro
É sua, minha amiga.

Sinhá, oh Sinhá
Não mentirei
Se eles encontram aquela arca cheia de ouro ao seu lado
Sinhá, oh Sinhá
Aquela tronca de ouro
É o que você ganhou quando vendeu minhas crianças....

Sinhá, oh Sinhá
Não chora, não
Mas o preço de ficar aqui é alto demais
Sinhá, oh Sinhá
Te desejo bem
Mas em ir embora daqui, estou saindo do inferno.



Julie, oh Julie
Won't you run?
'Cos I see down yonder the soldiers have come
Julie, oh Julie
Can't you see?
Them devils have come to take you far from me

Mistress, oh mistress
I won't run
'Cos I see down yonder the soldiers have come
Mistress, oh mistress
I do see
And I'll stay right here 'til they come for me

Julie, oh Julie
You won't go
Leave this house and all you know
Julie, oh Julie
Don't leave here
Leave us, who love you, and all you hold dear

Mistress, oh mistress
I will go
Leave this house and all I know
Mistress, oh mistress
I will leave here
With what family I've got left, they're all I hold dear



Julie, oh Julie
Won't you lie
If they find that trunk of gold by my side
Julie, oh Julie
You tell them men
That that trunk of gold is yours, my friend

Mistress, oh mistress
I won't lie
If they find that trunk of gold by your side
Mistress, oh mistress
That trunk of gold
Is what you got when my children you sold

Mistress, oh mistress
Don't you cry
The price of stayin' here is too high
Mistress, oh mistress
I wish you well
But in leavin' here, I'm leavin' hell





Moonshine, maconha e metanfetamína

Brancos pobres, rurais, com rifles: Sonny Dolly de Inverno Amargo e Daniel Jackson, de Resgate de Soldado Ryan. Nesta semana, vamos dis...